terça-feira, 9 de março de 2010

=> Linha do Douro vista por Vitorino Nemésio

Nascido na ilha Terceira, Vitorino Nemésio (1901-1978) é um dos grandes escritores e cronistas do séc. XX. Foi professor nas universidades de Lisboa, Montpellier e Bruxelas, e fundador, em 1937, da Revista de Portugal. Da sua vasta actividade no romance, poesia e crítica literária, o grande público retém como obra de referência «Mau Tempo no Canal». Nos últimos anos da sua vida, Nemésio ganhou projecção pública com o programa da RTP «Se Bem me Lembro».

Em «Portugal Através», o autor de «Mau Tempo no Canal» faz uma série de reflexões sobre o passado e o presente do caminho-de-ferro português, tudo a propósito de um velho álbum de fotografias da Casa Biel comprado na Feira da Ladra. É um texto curioso, sobretudo vindo de um açoriano, nascido entre rochedos, prados e ondas do Atlântico, num arquipélago onde o transporte ferroviário nunca existiu.
«Quem não é beirão ou transmontano de recesso acaba por dar conta apenas de uma estreitísima faixa longitudinal de terra. Com o simples correctivo das escassas dezenas de quilómetros de internamento da linha dorsal ferroviária, é caso para aplicar a nós, portugueses, na Península, o que Frei Vicente do Salvador dizia dos portugueses ‘marinheiros’ no Brasil: arranhamos o litoral: o nosso modelo viatório é o caranguejo».
Acontece assim, explica o autor, mais pelos caprichos da geografia, que pela falta de curiosidade dos autóctones: a barreira de serras impede que Leste e Oeste comuniquem facilmente. Daí a admiração com que Nemésio olha para a Linha do Douro e para as linhas de via estreita que da mesma irradiam.
«A Linha férrea do Douro – Tua e planalto transmontano – custou os olhos da cara à engenharia de fins do século passado, que acabou por fazer uma pequena obra-prima de «obras de arte», como se diz no calão respectivo. Pontes, viadutos, passos de nível, tornam-se, às vezes, ali jóias da arquitectura de trânsito: a pequena ponte alcandorada nos despenhadeiros das ribas, com o comboiozinho de via reduzida suspenso como um brinquedo; a velha «chocolateira» de locomotiva (tracção eléctrica, viste-la) chiando e fumegando à boca de um túnel praticado à face de ciclópicos ‘ovos’ de granito».
A seguir, o autor revela a fonte da sua inspiração. «Tenho aqui um grande álbum de fotos dessa via, da época: fototipias da antiga Casa Fritz, do Porto, na litografia de Biel. (Pode-se fazer o reclamo, que tudo isso já morreu.) Comprei-as ao desbarato na Feira da Ladra».
Segue-se a descrição, quer da obra, quer do ambiente retratado. «Maravilhoso! O ambiente penhascoso da bacia do Douro, dos vales do Càvado e do Zêzere, a qualidade material e operatória, a focagem – tudo um primor!». E lá vêm as referências ao comboio: «Os viadutos da Sermenha, de Quebrados, da Cabeda; o do Corgo e o do Ovil (‘Ovil’de ‘ovelha’, claro!); o de Pala visto de baixo, em toda a rudeza pegureira própria daqueles sítios, que Herculano chamava ‘desvios’. (...) Isto sem falar das comovedoras estaçõezinhas moribundas de lanterna pendente do sobredito Moledo, de Covelinhas, do Marco, de Vila Meã».



ALBUM DE "OBRA PRIMA" DE ENGENHARIA DO SÉCULO PASSADO

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